sábado, novembro 22, 2008

O Carteiro de Pablo Neruda


[...] - Qual abro primeiro, a carta ou o pacote?
- O pacote, filho - sentenciou Dona Rosa. - Na carta só vêm palavras.
- Não, senhora. Primeiro a carta. - O pacote - disse a viúva, fazendo menção de lhe pegar. O telegrafista abanou-se com uma asa e ergueu um dedo admoestador diante das narinas da viúva. - Não seja materialista, sogra. Com as mãos a tremer, pôs diante dos seus olhos o conteúdo, e começou a soletrá-lo cuidando que não se lhe escapasse nem o, mais insignificante sinal:
- «Que-ri-do Ma-rio Ji-mé-nez de pés a-lados...»
-Com um puxão, a viúva arrancou-lhe a carta das mãos e desatou a patinar sobre as palavras sem pausas nem entoações.
[...]«Não lhe escrevi antes como tinha prometido, porque não queria mandar-lhes só um postal com as bailarinas de Degas. Sei que esta é a primeira carta que recebes na tua vida, Mario e, pelo menos tinha de vir dentro de um envelope: se não, não vale. Dá-me vontade de rir pensar que esta carta tiveste de entregá-la tu mesmo...
[...] Rosa remexeu a abundante palha que enchia o pacote, até que acabou tirando com a ternura de uma parteira, um japonesíssimo gravador «Sony», de microfone incorporado. Preparava-se para ler um cartão manuscrito a tinta verde, pendurado de um elástico que rodeava o aparelho quando Mario lho tirou com um puxão. - Ah, não senhora! Você lê com demasiada rapidez. Pôs o cartão uns centímetros à sua frente como se o colocasse numa estante de música, e foi lendo com o seu tradicional estilo soletrado: «Que-ri-do Ma-rio dois pon-tos ca-rre-ga o bo-tão do mei-o.» -Você demorou mais tempo a ler o cartão que eu a ler a carta. - É que você não lê as palavras, mas devora-as, senhora. As palavras temos de saboreá-las. Temos de deixá-las desfazerem-se na boca. -«Queria mandar-te mais alguma coisa além das palavras. Por isso meti a minha voz nesta gaiola que canta. Uma gaiola que é um pássaro. Ofereço-ta. Mas também quero pedir-te uma coisa, que só tu podes fazer. Os outros meus amigos pensariam que sou um velho gagá e ridículo. Quero que vás com este gravador passear pelha Ilha Negra e me graves os sons e os ruídos que fores encontrando. Preciso desesperadamente nem que seja do fantasma da minha casa. Vai ao jardim e deixa tocar os sinos . Primeiro grava esse repicar fininho dos sininhos pequenos quando os agita o vento, e a seguir puxa a corda do sino maior, cinco, seis vezes. Sinos, meus sinos! Não há nada que soe tanto como a palavra sino, se a ouvimos de um campanário junto ao mar. E vai até às rochas e grava-me a rebentação das ondas. E se ouvires gaivotas, grava-as. E se ouvires o silêncio das estrelas siderais, grava-o. [...] Gravou o movimento do mar com o capricho de um filatelista. Reduziu a sua vida e trabalho, perante as iras de Rosa, a acompanhar os vaivéns da maré-alta, do baixar da água saltadora animada pelos ventos. Pôs o «Sony» numa corda, e filtrou-o por entre as gretas dos rochedos onde esfregavam as suas tenazes os caranguejos, e os limbos se abraçavam às pedras. Noutros dias calmos, teve a sorte de captar o voo picado da gaivota quando caía vertical sobre a sardinha, e o seu voo a rasar as águas controlando-a segura no bico [...]

O Carteiro de Pablo Neruda / António Skármeta

quinta-feira, novembro 20, 2008

This is For You my Son!


Está atento com o silêncio,
Protege-o porque contém todos os sonhos dos homens.
Preceito Ameríndio
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Chegou o teu dia.
Filho,
ficarás de pé
durante a luz do dia.
Passámos os nossos dias
Preparando o teu dia.

Poemas Ameríndios / Versão por Herberto Helder
Fotografia / Teresinha

segunda-feira, novembro 17, 2008

Gotan Project - El Capitalismo Foraneo

Obrigatório, ver, dançar e, assistir ao Espectáculo dos Gotan Project, dia 20 de Dezembro, (sábado), no Campo Pequeno, Lisboa.
[...] Entretanto, ensaie uns passos ao som desta música e, aproveite para ver outros vídeos, Gotan Project...

terça-feira, novembro 11, 2008

Istambul Memórias de Uma Cidade





[...] Estávamos na charneira dos anos sessenta com a década de setenta e, nesse domingo de manhã circulávamos pelas avenidas e ruas desertas de Istambul. O meu pai explicava-me que a melhor coisa na vida era a pessoa comportar-se como lhe apetecia, que o dinheiro não era um fim em si mas um meio que devia utilizar-se se isso contribuísse para o prazer da vida, falava-me dos poemas que tinha escrito e dos de Valéry que traduzira para turco no seu hotel de Paris quando nos abandonara , e, num tom alegre, contava como alguns anos mais tarde, numa viagem à América, lhe tinham roubado precisamente a mala onde guardava todos esses poemas e traduções. Esses relatos do meu pai - e também a história de como, nos anos cinquenta, via Jean-Paul Sartre nas ruas de Paris, e a da construção da residência Pamuk ou ainda a de uma das suas primeiras falências - eram feitos de maneira desordenada, saltando de um assunto para o outro em simetria com a disposição das ruas por onde passávamos ou a compasso da música que ouvíamos. Eu sabia, que nunca mais esqueceria a história que ia contar-me ao mesmo tempo que me chamava a atenção para a beleza da paisagem e para as lindas mulheres que caminhavam nos passeios, enquanto eu olhava através do pára-brisas para as imagens cinzentas da Istambul invernal. Observava os carros que atravessavam a ponte de Galata, as ruas estreitas dos bairros populares com enfiadas de casas de madeira ainda de pé, ou a pequena chaminé de um rebocador que singrava no Bósforo puxando barcaças carregadas de carvão. Ouvia atentamente os conselhos do meu pai. [...] Eu tinha a sensação que se operava uma simbiose entre o que via e o que ouvia. Ao fim de algum tempo, a música, as imagens de Istambul desfilando através dos vidros, os passeios e as ruas de pedra por onde o meu pai metia dizendo «vamos por aqui?» sem esperar pela minha resposta [...] Notava também outra coisa, tão importante como essas dificuldades: pensando nelas, precisamente, ou procurando o rasto da felicidade e da profundidade da vida, vemos pelo vidro do carro, da janela de casa ou do barco em que se atravessa o Bósforo, imagens que acompanham o nosso pensamento. Isso é muito importante porque, com o tempo, a vida, uma melodia, um quadro ou um conto conhecerá altos e baixos, ao passo que as imagens da cidade que passam diante dos nossos olhos, mesmo anos mais tarde, conservarão para sempre a frescura e ficarão em nós como a lembrança de um sonho[...]

Ohran Pamuk / Istambul Memórias de Uma Cidade